13.8.11

a pracinha e as babás de branco

Marcelo Carneiro da Cunha

De São Paulo
O que nos diz sobre nós mesmos a obrigação de que babás vistam branco?
(foto: Getty Images)

Estimados leitores, eis que me encontro em uma pracinha, diante de uma bela pracinha, para ser mais preciso, sentado em um bar e olhando para as pessoas na pracinha, para ver se a banda passa por aqui.

O fato é que meu baronato Carneiro da Cunha, localizado no nobre bairro de Pinheiros está se deslocando mais para perto do parque do Ibirapuera, para um bairro que me parece nobre, mas mais sem noção e onde passarei a reinar daqui pra frente. Os motivos todos saberão um pouco adiante, mas, por uns tempos, preciso de ruas menos ladeirosas e mais verdes, coisa que Pinheiros, tão pródigo em outros bens, praticamente não possui. E assim vim, na busca por terras com mais palmeiras e sabiás, e aqui, descubro, existe uma pracinha, e é nela que estou, porque me agradam muito as pracinhas.

Na minha infância querida, aurora de minha vida na friíssima e bela serra gaúcha, havia uma pracinha em especial na qual passei bons e ótimos momentos. Nela havia uma ilha com alguns macacos, coisa mais exótica do que pode imaginar um não-gaúcho e, mais tarde, barquinhos, nos quais gastei muita sola de sapato aprendendo o básico da navegação a pedal. Pracinhas são a razão da vida, eu acho.

Nessa pracinha, aqui no meu novo bairro, no entanto, existem flores exóticas. Elas passam bastante tempo paradas, se movem aos poucos e em grupos. Elas falam baixinho e entre si, não consigo ouvir o que dizem. Elas são flores com frutos, mas os frutos não são delas, aparentemente, e não se vê qualquer árvore-mãe, pelo menos daqui da mesa de bar onde estou sentado e olhando. As flores, estranhamente, num mundo com tantas cores, todas, todas, vestem branco. E isso, caros leitores, provocou um estranhamento e uma inquietude que agora se transformam nessa coluna.

Eu até que conheço bastante o Brasil, mas meu olhar inicial é moldado pela serra italiana no RS dos anos 60 e 70, pelo menos naquela época a parte mais igualitária que eu jamais vi no país. Lembro do desagrado da parte mais arcaica dos Carneiro da Cunha em visita ao ver a todos nós, família e trabalhadoras da casa almoçando juntos, mesma mesa, mesma comida, mesmos tudo. Lembro do meu espanto ao conhecer famílias de rincões mais atrasados do Brasil, tais como o Rio de Janeiro, ao ver os quartos destinados a elas, ao que se esperava delas, que eram chamadas à noite para fazer um suquinho para o Júnior. Na falsa riqueza da zona sul carioca, imperavam símbolos do falido império. Do mundo onde eu vivia, isso simplesmente não fazia parte. Na Porto Alegre em que eu cresci não havia porteiros nos prédios, como começam a surgir junto com a arquitetura paulistana que brota em todo canto. O que não quer dizer que aqui eu esteja criando um falso Rio Grande apenas para impressionar as visitas. Claro que existem sinais exteriores de diferenças sociais em todo lugar. Apenas sinto que eles não são tão gritantes lá como os que vejo nessa pracinha.

Aqui, na pracinha, brotam flores brancas por onde quer que eu olhe, e sinto que parte de mim vai ser infeliz nesse novo bairro. Vou gostar muito do verde, vou curtir o parque ali ao lado, quem sabe até mesmo comprar uma bicicleta? Mas o verde daqui é salpicado de branco, caros leitores, e isso é tão desnecessário quanto triste.

Não por conta das babás, que afinal trabalham e, me dizem, são bem pagas no bairro. Mas por conta dos empregadores que exigiram delas o branco. O que isso nos diz sobre o cérebro deles, o seu sistema de valores? O que isso nos diz sobre nós mesmos e sobre o que realmente somos e onde estamos, nesse Brasil de 2011?

Havia babás no meu prédio no nobre bairro de Pinheiros, mas branco vestem apenas os médicos que por ali vivem, e que vão ter que abandonar esse branco dos aventais usados em público. O meu nobre barro de Pinheiros é um lugar muito amigável e cordial, onde todos se cumprimentam no elevador e parecem gostar de estar ali. O meu novo bairro me surge como um lugar rico e ameaçador, onde os prédios têm câmeras e tantos seguranças vestindo preto quanto babás vestindo branco, símbolo do que pensam os meus novos vizinhos, mesmo que meu prédio fique na fronteira e a minha rua não seja uma rua igual às demais desse bairro. Saber que esse branco está aqui, e que a linda pracinha é um território dessas práticas segregatórias, faz de mim um barão Carneiro da Cunha bem menos contente do que eu era na minha luxuosa laje.

Todos sabem que eu gosto muito de viver em São Paulo, eu os atormento com as minhas experiências na cidade o tempo inteiro. Aqui, na pracinha, meu novo amor é submetido a um duro teste, e dele não sei como sairemos, todos que dele participam. Vai ser importante conviver com essa realidade que eu ainda não tinha sentido ou percebido. Vai ser importante passar por aqui todos os dias e pensar a respeito do que ainda somos, os brasileiros, especialmente os mais ricos. Colocar uma babá de branco a cuidar de um filho me parece ser, entre outras, uma das coisas mais bregas que eu já vi. Mas sou novo no bairro, e prefiro ser pós do que pré conceituoso. Por enquanto, a sensação é de que talvez não role amizade, mas apenas boa vizinhança, algo essencial. E compensações há. Existe uma surpreendente escola estadual aqui ao lado, e já estou me organizando para ir lá falar de literatura com grupos de EJA, algo que é simplesmente bom demais, e o bairro também permite. Nada é absoluto, a não ser o branco, dizem.

Um abraço a todos, daqui mesmo, no meio do branco menos branco que o mundo já viu, nesse pedaço de céu onde as nuvens seguem ordens, nesse lugar que consegue ser, ao mesmo tempo, uma pracinha e uma celebração do nosso insensato e infeliz apartheid à brasileira.


7 comentários:

  1. Texto fantástico, nos levar a refletir sobre as nossas amas de leite que vestem branco.
    Grande abraço.

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  2. Marcelo, se possível poderia me passar o nome da escola estadual? Meu namorado faz alfabetização e está procurando uma escola boa para participar do EJa!
    Sobre as babás, pois é, sempre vejo elas em todos on cantos, em Higienópolis então...
    O que mais me deixa possessa é o discurso direitoso à la Ali Kamel de "não somo racistas" e coisas do tipo... são as mesmas pessoas que tem babas do tipo. Que crianças serão essas criadas assim, e fico pensando onde e como estão as crianças das babás enquanto elas estão vestindo branco.
    beijoss
    Antonia

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  3. Um bom texto para reflexão desta necessidade de exibir "status".
    Agora veja o que aconteceu comigo: eu decidi continuar trabalhando depois que a minha filha nasceu. Como tenho horários bastante flexíveis e consigo estar em casa por longos periodos, decidi contratar uma babá no primeiro ano (que vai virar um ano e meio, já que decidi matricular a pequena na escolinha só no ano que vem). Assim, consigo trabalhar de casa, sempre supervisionando tudo. Sempre tive muito claro que a babá é para tomar conta da pequena enquanto trabalho ou vou a lugares que não posso levá-la (um casamento, um jantar). Apenas isso. Até porque tenho vergonha de ir a um restaurante ou ao shopping com a babá, por exemplo (aliás, babás existem para que a gente não precise levar o bebê ao shopping, na minha opinião). Nos momentos de lazer, quem cuida da minha filha sou eu.
    Então. Contratei a moça e nem pensei em comprar um uniforme para ela. Nos primeiros dias de trabalho, a babá veio conversar comigo, pedir um uniforme. Imaginei que ela queria conservar as próprias roupas, afinal, bebês fazem xixi, cocô e um vasto e nojento etc na gente o tempo todo. Achei justo, e encomendei algumas calças (coloridas) e camisetas (brancas, porque acho que é mais fácil de tirar manchas, se for o caso).
    Quando as roupas chegaram, a babá veio de novo conversar comigo sobre isso. Perguntou se eu não queria que ela usasse uniforme branco, e eu disse que não. Que achava, inclusive, mais prática uma calça preta, porque a sujeira fica menos aparente.
    Qual não foi a minha surpresa quando ela disse que gostaria de usar uniforme branco, porque:
    1. se acaso saíssemos eu, ela e a bebê, todos saberiam que ela é a babá e ela não se sentiria "intrusa" em ambientes que não eram "o ambiente dela". Não foram bem estas as palavras, mas a idéia era essa: sendo ela imediatamente identificada como babá, ninguém olharia torto para ela no shopping, por exemplo. Ser babá daria a ela a licença para frequentar ambientes ou locais que não seriam "permitidos" normalmente. Fiquei chocada, mas depois entendi. Quem nunca foi ignorada por vendedoras esnobes de lojas caras? A ausência de uniforme branco seria se expor a isto em todas as vezes em que saíssemos.
    2. Para ela, usar uniforme branco É SÍMBOLO DE STATUS. Acredite se quiser. Fiquei mais chocada com isso que com o motivo anterior. Ela me disse que sempre trabalhou como empregada doméstica e que o trabalho como babá é uma promoção, uma função mais qualificada. Que ela estava orgulhosa desta nova posição social conquistada e queria exibir por aí, o que seria possível através do reluzente uniforme branco.
    E aí? Como agir?
    (eu resolvi assim: comprei algumas peças brancas e outras coloridas e a deixo à vontade para combiná-las como quiser. De vez em quando ela surta e aparece toda de branco, mas na maior parte das vezes ela usa as peças coloridas. fiquei feliz da vida foi no dia em que precisei da ajuda dela para levar a pequena ao pediatra - meu marido, que sempre me acompanha, não podia de jeito nenhum - e ela foi se trocar: apareceu de jeans e camiseta. ufa.)

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  4. ah, esqueci de contar que a babá aqui em casa trabalha registrada, recebe exatamente as mesmas coisas que um funcionário de empresa recebe, almoça exatamente a comida que eu como, cumpre jornada de oito horas e nem um minuto a mais e não dorme aqui. quando tenho algum compromisso noturno e ela vem para ficar com a pequena para mim, dorme no terceiro quarto do apartamento, assim como qualquer pessoa que se hospeda aqui. e, obviamente, recebe horas extras.

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  5. Karen: acho que esse texto, antes de ser uma relexão, é um tapa bem forte na cara. Ninguém precisa ter compromisso com babás e seus uniformes brancos! Fácil dizer: "Querida babá, amanhã venha um jeans e camiseta de qualquer cor, nada de roupinha branca, tá! As coisas aqui em casa mudarão a partir de amanhã!"

    Antonia: eu reproduzi um texto. O e-mail do Marcelo é marceloccunha@terra.com.br
    Muitas delas nem tem filhos ou já estão grandes.... ou largados... É racismo, não é cosplay de enfermeira. Mas é difícil a pessoa aceitar isso, conhecer o próprio erro. Mudar é mais complicado do que parece.

    Dani: Por que você se envergonha em levar a babá ao shopping? Também penso que temos que aprender a cuidar dos nossos filhos quando estamos na rua. Você acha que sei cuidar do meu? Claro que não... rsrsrs É um aprendizado diário, desgastante e muito compensador. Eu amo cuidar de quem Deus me deu. AMO! O famoso padecer no paraíso.
    Dani, a babá precisa aprender que na sua casa é diferente. Quanto às vendedoras esnobes, porque você deixa seus filhos com o marido ou uma amiga para fazer as suas compras? Agora é só o que falta: usar branco como escudo. Fico com pena da sua babá, porque no fundo ela sofre demais com a profissão. Será que é isso que ela quer fazer? Sabe aquela velha história de não ter mau gênio, de não se ofender? Característica importante para a profissão, sabe... ainda mais numa cidade tão racista como a que você está.
    Status? Veja só, ela tem que ter orgulho de ser quem ela é, não importando qual é a profissão do momento. Parece que ela está muito preocupada com o que as outras domésticas pensam dela. No seu lugar, eu não teria essa babá. Eu sei que não existe funcionária perfeita, mas puxa, pelo que você escreveu aqui, ela aparenta não gostar muito das suas ordens e determinações porque são diferentes da boiada que ela veio, está sempre querendo justificar com "o que os outros pensam... o que as vendedoras fazem... os outros... os outros...".... na SUA casa é diferente e ela precisa aprender assim. Muito complexo de inferioridade, muito recalque. Não acredito que ela tenha se blindado com o uniforme branco. São problemas profundos, acredite em mim. :(
    Você parece ser muito justa e humana com ela, e ela precisa obedecer. Converse, mas não esqueça que a casa é SUA.

    Obrigada por comentarem. Essa matéria é fantástica.

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  6. Luana, retornei aqui e vi sua resposta em um momento MUITO oportuno. Tive alguns problemas com a babá (em alguns dias tudo muda, não é mesmo) e descobri algumas atitudes dela que, para mim, são imperdoáveis (não em relação à minha filha graças a Deus, mas coisa de fofocas e intrigas com as outras babás do prédio, dentre outras cositas mais).
    Enfim, tenho que dizer que gostei muito da sua leitura sobre a minha situação e arrisco dizer que a origem destes problemas - que levarão à demissão dela - é realmente o que você disse, o fato dela não concordar com o meu jeito de ser. Tentei mostrar um novo caminho a ela - o do respeito - mas infelizmente não rolou. Vamos à próxima, então.


    Em relaçao à vergonha de sair por aí com babá a tiracolo é apenas pela sensação "sinhazinha" que isso me provoca, sabe? Eu prefiro sair sozinha com a minha peque e passar pelos perrengues que toda mãe conhece do que ter essa sensação de que tenho uma "serviçal" à minha disposição o tempo todo. Fui criada com as faxineiras da casa da minha mãe almoçando com a gente, todos na mesma mesa. Não consigo conceber sentar em um restaurante para bater papinho com as amigas tendo uma empregada (provavelmente com vontade de provar a comida dali) correndo atrás da minha filha. Não vai.
    Quando preciso comprar roupas para mim, ou deixo a pequena em casa ou levo a minha mãe junto. Pelo mesmo motivo. Prefiro.
    Outra coisa que me incomodaria DEMAIS seria a babá me ver gastando em um restaurante, ou em duas, três peças de roupa, o valor, sei lá, do aluguel da casa dela. Acho que tem coisas que a gente não precisa fazer com as outras pessoas

    Como foi bom encontrar seu blog! Sério mesmo! Que delícia ter uma pessoa pensante neste mundo de futilidades....

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  7. Dani, insubordinação é algo imperdoável mesmo. Você está certa! Fofoqueira de plantão, ui, fuja!

    Não quero ser chata (mas já sendo), penso que as mães contratam mulheres com um comportamento muito preocupante e inadequado para cuidar de seus filhos. Na verdade, não servem nem para atendentes de telefone de creche. Existem exceções, mas quanto custam mesmo??? As melhores, que eu saiba, estão recebendo 3,700 em Sampa, no mínimo. Por esse valor, tem muita Pedagoga que iria ao céu para poder ajudar no cuidado de crianças que são de uma classe privilegiada.

    Em tempo: eu não teria vergonha de ser uma babá com estudo e preparo. Teria vergonha de ser uma futriqueira de uniforme branco.

    Beijo!

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